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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

A guerra contra monstros que criamos

Atualizado: 7 de abr. de 2022

O medo é uma emoção impaciente e confusa, as vezes parece um chefe com dificuldade de comunicação. Ele chega te dando uma ordem de lutar ou fugir sem se explicar muito. Você apressadamente segue a ordem, sem questionar, acaba lutando contra não sei o que ou fugindo de sabe-se lá o que.


Nesse texto pretendo questionar um pouco as ideias de coragem e ilusão.

No conto de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, um fidalgo amante dos romances de cavalaria cria o próprio mundo onde é um cavaleiro e que precisa salvar sua donzela de perigos. Tanto a donzela quantos os perigos com os quais luta são frutos de sua imaginação. Essa imaginação e esse mundo criado fez com que o descrevessem como louco. Vamos chamar essa loucura de ilusão ou engano, por enquanto.


Um dos momentos mais engraçados da saga é uma luta contra moinhos de vento com a certeza de que está enfrentando um grupo de gigantes. Proponho pensar por um instante nesse momento. Cavaleiros são figuras corajosas, e a coragem diz sobre o enfrentamento de medos. Se não há riscos, não há medo então não há coragem. Para ser um cavaleiro corajoso, Dom Quixote precisa que sua jornada tenha perigos e medos para enfrentar.


Cada medo pede uma coragem diferente. A questão aqui é qual medo estamos falando em enfrentar: dos gigantes, dos moinhos ou do engano?

Os gigantes


Em alguma medida ser um cavaleiro corajoso matador de gigantes é algo importante para Dom Quixote. Um ataque de gigantes pode ser assustador mas a realização desse desejo implica no enfrentamento desse medo. Então embora o medo de gigantes possa ser considerado aqui, é um medo que compõe a fantasia de ser um cavaleiro matador de gigantes, logo sustenta o desejo de Dom Quixote. Aqui houve coragem, Dom Quixote enfrentou os gigantes.


Os moinhos


Moinhos de vento não são assustadores. Apesar do risco de uma pá acertar alguém que passe muito perto e desatento, ou mesmo de ser arremessado como aconteceu com Dom Quixote, é menos assustador que gigantes. Ao se dar conta de que eram moinhos, a forma de sustentar a postura corajosa de cavaleiro foi enfrentar o medo de seu inimigo feiticeiro que transformou gigantes em moinhos. Aqui a transformação traz medo, os moinhos não. Não há coragem em enfrentar moinhos.


O engano


No momento que Dom Quixote avistou os moinhos e contou a Sancho Pansa, este disse que não eram gigantes, era moinhos. Ainda assim Dom Quixote avançou com sua lança sobre os moinhos e assim acertou uma das pás e foi lançado junto ao seu cavalo para o alto. Quando Sancho se aproximou e disse que tinha avisado sobre o engano, Dom Quixote respondeu que seu inimigo, um feiticeiro, transformou os gigantes em moinhos de vento.

Aqui parece haver alguma indisposição mais profunda, talvez um medo mais difícil de enfrentar. Admitir o engano, seria admitir a fragilidade dessa fantasia de cavaleiro corajoso. Esse sim seria um risco grande pra se enfrentar. Maior que o risco de um ataque de gigantes. Esse sim seria um medo onde falta coragem (e um tópico interessante pra terapia...).


A guerra


"Na paz preparar-se para a guerra. Na guerra, preparar-se para a paz." Sun Tzu

Ao final do livro, Dom Quixote em algum momento tenta ser convencido da sua loucura. Responde que foi essa ilusão que lhe permitiu sair da melancolia e ser mais corajoso. A guerra que travou contra os perigos ilusórios era o que o mantinha menos melancólico e mais corajoso.


Será que a voz racional que aponta a realidade seria uma "saída" para a loucura de Dom Quixote? O preço de ser mais melancólico e menos corajoso deve ser pago em prol de confrontar a realidade das coisas? Viver nas suas terras como fidalgo melancólico observando moinhos de vento ou viver como cavaleiro corajoso viajando pelo mundo?


Não é como se isso fosse uma escolha consciente para Dom Quixote ou pra qualquer ser humano, mas talvez seja sobre isso que trata a análise e algumas terapias: Saber que tipo de cavaleiros corajosos queremos ser, ter um pouco mais de consciência de quais enganos e ilusões nos aprisionam, separar o que é moinho do que é gigante, e repensar contra o quê vale a pena apontar nossas lanças e vestir nossas armaduras.


Dom Quixote é um personagem muito humano. É humano se iludir, colocar esforço na ilusão e depois sentir dificuldade em reconhecer a ilusão ou um esforço em vão. Carregou armas e armaduras pesadas por tanto tempo que foi mais fácil se convencer a continuar carregando que se convencer a retirá-las por estar enganado ou iludido.

Do século XVII ao século XXI


O que uma obra do fim da idade média tem a ver com nossos dias atuais? O melhor jeito de responder essa pergunta é com novas perguntas


A quais ilusões estamos mais apegados hoje? Que moinhos transformamos em gigantes e que armaduras carregamos? Como na "era da informação" há grupos de pessoas que defendem uma Terra plana?


O excesso e velocidade de informações cria facilmente um mundo de ilusão. Antes de parar pra questionar se o gigante pode ser um moinho, nós já avançamos com nossas lanças em dezenas de gigantes. Não há um momento de hesitar e pensar antes de escolher e agir, não há tempo.


Se antes assistir um filme era um momento necessário de fuga da realidade, para depois voltar a encará-la, hoje a quantidade de filmes não tem fim. O tempo de pensar e refletir sobre um episódio de uma série até o lançamento do próximo episódio na semana seguinte foi substituído por maratonar 10 episódios em seguida. E em seguida maratonar outra série, e outra, e outra...


Consumimos e descartamos sem digerir direito. Se perguntar o que foi isso que assisti? Como isso me afetou? A resposta foge, e a vontade de consumir o próximo filme ou série chega e apaga qualquer vestígio de pensamento.


"É impossível enfrentar a realidade o tempo todo sem nenhum mecanismo de fuga" Sigmund Freud

Enfrentar a realidade é tão importante quanto descansar da realidade, mas parece que isso está desbalanceado. Hoje temos condições de viver uma vida inteira lutando contra moinhos acreditando serem gigantes sem um momento de pausa pra refletir se é essa vida que realmente desejamos.

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