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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

Ato falho e as manifestações do inconsciente

Dentro daquilo que nos une na experiência humana, certamente os deslizes, tropeços e equívocos estão entre os eventos mais subestimados. No livro Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1904) Freud descreve uma série de situações com seus analisandos, colegas e até ele próprio onde simples equívocos de linguagem, após uma análise mais aprofundada, se mostraram janelas para aquilo que estava oculto no inconsciente.


Nesse texto vou comentar um pouco sobre esses fenômenos embaraçosos e descrever seu valor clínico na terapia.


Lapsos de fala, escuta, leitura e escrita


"Até mais, que Deus te elimine... ops, que Deus te ilumine"

Se você não passou por isso, provavelmente vai passar ou conhece alguém que passou. As vezes queremos falar uma coisa e falamos outra. Trocamos um pedaço da palavra e isso já muda totalmente o sentido, pode ser uma letra, uma sílaba, uma palavra numa frase. Depois do embaraço, corrigimos o sentido e seguimos em frente.


O que Freud investigou é que essas trocas de letras, sílabas ou palavras não são aleatórias. A palavra "errada" que falamos se mostra a mais acertada do ponto de vista do inconsciente. Aquilo que estava contido e escapou de forma distorcida numa palavra trocada. A análise é um processo no qual podemos decifrar essas distorções e revelar o que elas escondem.


Um lapso de linguagem pode acontecer também na leitura e escrita, inclusive na produção de textos como esse. No primeiro parágrafo, inicialmente escrevi "Se você passou por isso, provavelmente vai passar" omitindo o não. Por um breve lapso deixei escapar uma resistência a ideia de alguém que não passou por isso. Essa leitura do meu ato falho de escrita pode ser uma análise selvagem superficial e mais óbvia, mas é um exemplo de como estamos sujeitos a isso no dia a dia. Há também as palavras que trocamos e não fazemos ideia do porquê, especificamente essa palavra, apareceu ali, e que não bastaria uma análise superficial como essa para desvendar sua causa, mas que num processo de análise já é possível atingir maiores níveis de aprofundamento.

Durante uma leitura, também acontece de ler algo que não correspondo ao que estava escrito ali exatamente. Lembro que por volta da quarta série eventualmente recebíamos a tarefa de procurar o significado de uma lista de palavras e explicá-las na aula seguinte. Certa vez a professora pediu para procurar o significado da palavra "lazer". lazer

substantivo masculino 1. tempo que sobra do horário de trabalho e/ou do cumprimento de obrigações, aproveitável para o exercício de atividades prazerosas. 2. FIGURADO atividade que se pratica nesse tempo.

Eu devia ter uns 10 anos, não foi tão simples entender esse significado, era abstrato demais pensar o que era e não era trabalho, obrigações, atividades prazerosas e sentido figurado. Embora essa pesquisa tenha sido mais lazer que trabalho. Precisei de ajuda dos meus pais e ainda assim penamos em escrever uma definição que eu soubesse explicar. Cheguei feliz com as minhas pesquisas no dia seguinte. Só então fui descobrir que a palavra era "laser". laser

substantivo masculino INFORMÁTICA•ÓPTICA 1. qualquer aparelho que produza radiação eletromagnética monocromática e coerente nas regiões visível, infravermelha ou ultravioleta, possuindo inúmeras aplicações que vão da soldagem à cirurgia.

2. apositivo gerado por esse tipo de aparelho. "radiação l."


Aí tive um ato falho de leitura que não submeti a nenhuma análise mais profunda, mas certamente pesquisar lazer fez mais sentido pra mim que pesquisar laser, daí minha inclinação a trocar a letra "s" pela letra "z", e consequentemente o sentido da palavra e da tarefa.



Todos lapsos de linguagem oferecem oportunidades de investigação do inconsciente, mas meus favoritos são os de escuta. Quando ouvimos certa coisa mesmo quando não foi exatamente aquilo que foi dito, comumente em situações onde ouvimos algo incômodo sendo dito quando na verdade esse incômodo estava na nossa própria cabeça.


Acontece durante as sessões certo tipo de diálogo: Analista: O que você acha disso? Analisando: Sim, com certeza

Analista: Sim o quê?

Analisando: Ela estava errada sobre isso... Não foi isso que você disse?

Analista: Não...


Não nos damos conta do quanto de esforço precisamos fazer pra produzir falas coerentes, impecáveis, sem erros, sem tropeços ou deslizes, do quanto queremos ser bem entendidos. Mas a fala mais plena, do ponto de vista do inconsciente, é aquela do deslize, da falha, do sem querer querendo. Falar livremente implica se sujeitar a cometer esses deslizes, de modo a permitir que o que está inconsciente fale por si e aponte o desejo, construindo o horizonte ético de toda análise.


Esquecimentos e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)


Um dos esquecimentos que Freud analisa de si mesmo, foi quando precisava fazer uma viagem razoavelmente longa e esqueceu de levar as chaves, tendo que voltar imediatamente e não tendo tempo de retornar ao destino inicial. Após analisar mais a fundo esse esquecimento, ele se dá conta de que não queria tanto fazer essa viagem, mas não se permitia negar essa viagem, de modo que o esquecimento encontrou uma "solução" pra esse conflito que pendia para o lado do desejo.


Durante a análise esquecemos de certos assuntos, vamos na intenção de falar uma coisa, mas chega na hora e começamos a falar de outras. O analista aponta uma questão importante numa sessão, e enquanto analisandos pensamos "vou me lembrar disso, vou pensar nisso" mas é só quando esse assunto volta meses depois que nos damos conta de que tínhamos esquecido dele.


Do ponto de vista do inconsciente não há memória, não há tempo, há o desejo e seus conflitos. Quando esquecemos, não apagamos a memória ela se afasta do lugar de acesso fácil da consciência para o lugar enigmático e codificado do inconsciente.


Quando um analisando chega e diz "Tinha um assunto que queria falar hoje, mas não lembro qual é"... Penso "ótimo, é nesse momento que o desejo inconsciente pode mais facilmente aparecer". A regra da análise é falar livremente o que vier na cabeça, sem julgamentos e censuras isso vale também pro julgamento que cobra memória, ter que lembrar. Se consideramos memórias traumáticas, o imperativo da lembrança pode ser violento, algo como dizer "lembre-se daquilo de ruim que te aconteceu em detalhes" o que é bem diferente de dizer "fale aquilo que se lembra".


Esquecer é tão importante quanto lembrar. É uma dialética que nos ajuda a selecionar aquilo que é o mais fundamental da memória. É nos distraindo de uma lembrança e reencontrando ela que experimentamos seu valor na memória. Quando temos que nos lembrar de tudo o valor de cada memória fica nebuloso, esvanece e desaparece. Uma inteligência artificial não é capaz de avaliar o valor de uma memória ou informação a partir de critérios humanos, seu critério é estatístico, algorítmico. A IA não esquece porque não é humana, não tem conflitos internos com uma memória nem o júbilo do seu reencontro com ela, ela armazena tudo igualmente e cada vez mais.


Ao ir a análise e falar, não é só a memória consciente que está em jogo, mas toda nossa história de conflitos e desejos até naquilo que não nos lembramos. É falando e tropeçando na fala que podemos resgatar a história do desejo que nos coloca no mundo.


Há uma escala entre uma pessoa com diagnóstico de TDAH em tratamento e uma pessoa que gostaria se esquecer menos e se distrair menos. Esquecimento e distrações não são doenças, mas por serem tratados como características não desejáveis a um sistema que quer, a qualquer custo, maximizar a capacidade produtiva das pessoas, passam a ser coisas que nos tornam indesejáveis. O trabalhador ideal se parece cada vez mais com um robô, e não é atoa que estamos assistindo a substituição de trabalhadores humanos por máquinas. Até a inteligência que era um atributo humano está sendo produzida artificialmente por algoritmos, e valorizada mais que o trabalho humano.


Não se distraia, não se esqueça, não descanse, não pare, não reclame e não falhe são comandos seguidos por máquinas. Uma inteligência artificial não poderia fazer análise (para além dos motivos óbvios) porque ela não falha, não desliza, não esquece, não tropeça, não tem conflitos e consequentemente não deseja. São essas manifestações do inconsciente que permitem uma análise.


Faz parte da terapia nos encontrarmos com os ideais que orientam nossas vidas e que foram herdados da parcela da comunidade humana onde crescemos. Será que ainda faz sentido mirarmos ideais desumanos pra construir nossas relações e nossa carreira?


Quanto mais tentamos nos encaixar nesses ideais desumanos mais entramos em conflito com aquilo que nos faz seres humanos e seres vivos, como se fosse a parte "errada" em nós. A Psicanálise que dedico minha formação visa a promoção do humano em nós e em nossas relações. Enquanto seres humanos somos seres erráticos, todos estamos sujeitos ao erro. Com esse fim, pra além de um encaixe diagnóstico, considero bem mais interessante pensar na nossa relação com cada um dos sintomas desse diagnóstico, com nossos esquecimentos, distrações, hiper-foco, agitação, ansiedade e todas essas experiências e condições que estamos sujeitos em menor ou maior grau enquanto seres humanos.


Atos equivocados e acidentais


Tenho certo apreço por frigideiras antiaderentes. Pesquiso a anos os melhores custo benefícios e formas de cuidar delas o máximo que posso pra aumentar sua durabilidade. Quando alguém vai utilizá-las, dou instruções detalhadas dos cuidados que tomo pra sua preservação. Mesmo assim, duas vezes, esqueci duas frigideiras diferentes aquecendo no fogo a ponto de formar resíduos espessos e impossíveis de limpar sem prejudicar o efeito antiaderente delas. Testei todo tipo de receitas na internet e nenhuma funcionou, resultado perdi duas frigideiras.


Depois de pensar um tempo sobre isso percebi que sempre que constatava o fim de um frigideira eu sentia um certo alívio da responsabilidade e das preocupações em cuidar delas. Embora eu realmente quisesse que elas durassem eu não queria ter que me preocupar tanto com isso. Esquecer elas acidentalmente no fogo era uma forma da minha vontade de não me preocupar com isso prevalecer.


Quando me dei conta desse conflito e de um certo estresse que isso trazia pude não ser tão rigoroso na cobrança pelo cuidado com a frigideira e até agora a frigideira atual tem durado e não fico tão preocupado com ela.


Esse exemplo bobo me ajuda a ilustrar como entender melhor nossas falhas pode ser mais interessante que lutar contra elas ou evitá-las a todo custo. As vezes, contraditoriamente, evitar uma falha é justamente o que nos induz a ela. Nenhum de nós está imune ao desejo, ele sempre dá um jeito de nos encontrar ali nas nossas faltas, incompletudes e deslizes. No processo de análise podemos nos haver com o desejo de modo a construir uma relação menos sofrida e mais livre com ele.


Superstição, determinismo e análises selvagens


Há uma certa inclinação humana em dar significados a fatos arbitrários, mas quando se trata de atos falhos a análise mais significativa é aquela que nos propomos fazer aos nossos próprios atos falhos. Investigação de atos falhos é função do analisando, o próprio autor do ato-falho.


Sair apontando atos falhos dos outros fora do setting analítico não é ético nem funcional. Uma manifestação inconsciente abre uma janela de oportunidade de análise, mas dependendo da condução dessa oportunidade ao invés de olhar pela janela o sujeito pode trancar ela com cada vez mais cadeados.


Não é difícil de imaginar uma discussão de casal onde um troca o nome do outro pelo nome da(o) ex. Antes mesmo que o agente do ato falho poder se questionar sobre por que disse isso, a interpretação selvagem recheada por sentidos - que não são do autor do ato falho - vem na forma de um "ta querendo terminar?", "não me ama mais?" e assim por diante. Das infinitas possibilidades de entrar em contato com essa experiência o foco estaciona na mais conflituosa possível. E quase nunca é o que parece.


Um dos desafios da terapia, mais precisamente do processo analítico, é nos colocarmos diante dos nossos mistérios com uma curiosidade genuína, reconhecendo aquilo que não sabemos e paralelamente respeitar nosso tempo de elaboração. No começo da minha trajetória terapêutica me pegava querendo investigar minhas questões a força o mais rápido possível ignorando que faz parte desse processo ser atravessado por pensamentos e sentimentos que precisam ser recordados e repetidos o quanto for necessário para que sejam elaborados e bem digeridos. O resultado dessa auto-exigência era angústia e má digestão.


Lacan coloca o tempo do inconsciente como lógico e não cronológico. O corte súbito da sessão é uma ferramenta que permite respeitar o tempo do inconsciente e o processo de elaboração de cada um mesmo quando é difícil para nós admitirmos que nosso processo de elaboração não segue o tempo que consideramos ideal. Muitas vezes um ideal que vem de fora, de pais, professores e chefes. Numa perspectiva mais ampla e justa, de uma organização social que incentiva o máximo desempenho em tudo o tempo todo.


Quem teve a sessão interrompida depois de emitir um ato falho sabe como pode ser desconcertante sair dali com a inquietação do foco recair não sobre aquilo que preparei pra falar, mas, sim, pelo que falei sem preparar e sem dar tanta importância. Mas de outro lado pode vir a saber também a sensação de surpresa diante da revelação da importância por trás daquilo que foi dito.


Quase sempre quando me pego num ato falho, a única reação possível é rir, reconhecer e decidir se vou fazer alguma coisa com isso.


Desejo muitos atos falhos a você que leu até aqui!







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