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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

Dilemas profissionais e os múltiplos significados do trabalho

Atualizado: 9 de abr. de 2022

"A pessoa não é senão o que procura ser" (Rodolfo Bohoslavksy)

Me dei conta que ainda não tinha escrito texto algum sobre Orientação Profissional. É um tema extenso que gosto muito. Vou introduzir algumas questões com esse texto a fim de ilustrar alguns aspectos de dilemas profissionais que considero importantes enquanto orientador profissional.

Quem me ensinou o que é trabalho?


Crescemos vendo pessoas trabalharem, falam sobre trabalho e as vezes nos perguntam "o que você quer ser quando crescer". O trabalho é associado desde cedo à identidade, a quem seremos no futuro. Embora alguns de nós possa ter dado respostas brilhantes a essa questão como "quero ser adulto" ou "quero ser feliz" chega o momento em que nos deparamos com decisões profissionais onde tais respostas não são suficientes.

Que curso técnico vou fazer? Vou prestar vestibular? Pra qual curso? Em que lugar? Quero trabalhar com quê? Quero ter isso como hobby ou como trabalho? Onde me vejo daqui a 5 anos

? E daqui a10 anos?


E por aí vai...


São questões que tem determinado valor e determinado peso de acordo com diversos fatores: a fase da vida que aparece; os graus de liberdade de escolha; contexto social, etnia, gênero, raça, classe... As próprias perguntas que nos fazemos sobre trabalho já revelam um pouco nossa própria posição na sociedade. Para algumas pessoas o trabalho vai aparecer como uma necessidade urgente de subsistência, para outras como a realização de um sonho próprio ou da família, e para outras nem um nem outro, ou um pouco de um e um pouco do outro. O significado que damos ao trabalho está condicionado a nossa história de vida e lugar social.


Influências do contexto social


Nossa noção do que é trabalho é construída a medida em que observamos as pessoas ao nosso redor falar sobre o trabalho e trabalhar. Os primeiros trabalhadores que temos contato estão no círculo social mais próximo da infância, a família. A forma como olhamos para o trabalho das pessoas nesse círculo próximo aponta para os primeiros sentidos que colocamos na palavra trabalho.


"Trabalho é aquilo que traz dinheiro pra casa", "trabalho é aquilo que deixa as pessoas estressadas", "trabalho é aquilo que deixa as pessoas felizes"... Por aí vai...


Um outro círculo social que influencia a construção de nossa concepção de trabalho tende a ser a escola. Além dos professores e funcionários que podemos ter contato, enquanto trabalhadores, experimentamos um microcosmo do mundo do trabalho na relação com pessoas que não são do nosso círculo familiar.


Fazemos trabalhos em grupo, recebemos tarefas, cumprimos regras, e somos recompensados ou punidos de acordo com o desempenho e comportamento. Experimentamos tanto interesse como aptidão nesse contexto, descobrimos coisas que gostamos mais ou menos de fazer e coisas que nos consideramos mais ou menos bons em fazer. Aos poucos vamos associando isso com interesses e aptidões necessárias para certos tipos de trabalho:


"Por que que eu tenho que aprender biologia? Onde vou usar isso na minha vida?"

"Ah, se você pensa em ser médica(o) vai ter que saber biologia"


O sistema escolar vai aos poucos nos conduzindo a algum lugar social de produção, de alguma maneira nos prepara para a convocação de assumir algum papel na sociedade que tenha a ver com o trabalho que faremos nessa sociedade.


Conforme vamos nos identificando com certas figuras, imaginamos futuros mais ou menos possíveis de trabalho. A criança que não teve professores do seu gênero, da sua cor ou etnia, pode não considerar trabalhar como professora pela falta de referências e não se sentir encorajada a apostar nessa carreira. A criança que vê um jogador de futebol pode considerar esse trabalho de acordo com o quanto se identifica com essas figuras e é encorajada a se imaginar nesse lugar.


Toda estrutura social de divisão do trabalho se repete na infância desde as relações familiares e escolares. A ideia de existe um "trabalho de menina" e "trabalho de menino" molda as fantasias da criança sobre o trabalhar. Um dos argumentos a favor da diversidade no trabalho é pautado na ampliação de referências para as futuras gerações, o que pode colaborar para que mais possibilidades de trabalho sejam consideradas pela juventude ao imaginar suas carreiras.


História do trabalho


Esse contexto social no qual vivemos é resultado de eventos históricos e de um certo funcionamento social que tem um passado, as possibilidades de trabalho que existem hoje estão diretamente relacionadas com a história do trabalho na nossa cultura e nossas condições materiais.


Só podemos hoje ter pessoas trabalhando como influenciadoras digitais pois temos um certas condições materiais (como celulares, internet, redes sociais, empresas que pagam por propagandas e visualizações), históricas (como o desenvolvimento crescente das estratégias de publicidade para captação cada vez mais eficiente dos consumidores de certo produto ou serviço) e culturais (como nosso hábito de frequentar o espaço online a qualquer hora na palma da nossa mão e nosso hábito de consumir através de propagandas publicitárias) que permitem que alguém venda sua capacidade de captar atenção do público e se sustente a partir disso.


Hoje presenciamos identidades ocupacionais sendo construídas a partir de identificações com influenciadores digitais e gamers profissionais algo possível de imaginar a pouco tempo na história da humanidade.


A história da civilização humana pode ser entendida como a história das formas de produção. Se queremos falar da vida em sociedade, falamos de como a sociedade se organiza para atender suas próprias necessidades por meio de relações de produção (trabalho e resultado do trabalho). Karl Marx conduziu sua investigação histórica e filosófica a partir do método materialista histórico-dialético se questionando sobre quem produz o que? pra quem? como? e por quê? ao longo da história.


O trabalho nos coloca em determinado lugar de produção na sociedade. Olhando de uma forma mais ampla a escolha de trabalho tem a ver com qual papel assumimos em determinada comunidade considerando as necessidades desse grupo. Tanto a forma que o grupo reconhece e valoriza cada papel varia, quanto a extensão do grupo que estamos considerando. Durante muito tempo a maioria das profissões era local e sustentava a necessidade de pequenos grupos. O mundo contemporâneo, globalizado e conectado trouxe novos parâmetros para papeis e necessidades coletivas, consequentemente trouxe novas possibilidades de trabalho e carreira.


Dilemas comuns


A escolha do trabalho pode ser conflituosa por envolver elementos tão importantes quanto diferentes entre si como interesse, aptidão, remuneração e função social. Esses elementos podem ter prioridade um sobre o outro e as vezes isso não fica tão evidente, carece de elaboração e nos coloca em conflitos que podem ser bem angustiantes.


A identificação desses conflitos acontece por meio de uma investigação detalhada das seguintes perguntas:


  • O que gosto de fazer? (interesses)

  • O que sei fazer bem? (aptidão)

  • O que me pagam pra fazer? (remuneração)

  • O que o mundo precisa que alguém faça (função social)


Encontrar o equilíbrio ideal entre todas essas coisas é raro. Há um termo japonês chamado Ikigai, que a tradução seria como "razão de viver" pra quando alguém encontra um trabalho que contemple esses 4 elementos.


Considerando o Brasil como uma sociedade historicamente em crise, a remuneração e aptidão são critérios que se sobressaem na escolha de trabalho, pois em grande parte dos casos as pessoas trabalham para atender necessidades básicas de sobrevivência. Então o grau de escolha cobre as opções de trabalho que as pessoas se sentem aptas a fazer e são remuneradas por isso, em detrimento de seus verdadeiros interesses ou da função social do trabalho.


A ideia de considerar a função social do trabalho em uma escolha profissional tende a ser menos frequente em sociedades com culturas mais individualistas. Alguns podem pensar que se tem remuneração, tem reconhecimento de uma função social, mas nem sempre isso é verdadeiro.


A ONU se esforça em discutir e organizar necessidades humanas globais. Uma maneira de começar a reflexão sobre a função social de cada trabalho seria questionar como esse trabalho se relaciona com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU ( https://odsbrasil.gov.br/ ) para 2030.


Um dilema comum é entre interesse e remuneração:

"Não me pagam o suficiente pelo que gosto de fazer, mas pagam por aquilo que não gosto". Ou

"posso mudar de cargo pra fazer algo que gosto mais/menos mas vou receber menos/mais".


Ou também entre interesse e aptidão:

"Gosto muito de fazer isso, mas não faço tão bem",

"Não gosto tanto de fazer isso, mas faço muito bem".


Ou interesse, remuneração e função social.

"Esse trabalho não paga bem, mas gosto de fazer e cumpre uma função social que considero importante"

"Esse outro paga bem, mas não gosto de fazer apesar de cumprir uma função social importante"

...


Estou considerando trabalho como um cargo, ou uma função remunerada, mas podemos considerar também os trabalhos de cuidado e manutenção à vida que nem sempre é remunerado. Como preparar comida, limpar, fazer toda manutenção cotidiana da vida que com certeza cumpre uma função social essencial e remete a aptidões, mas que também pode estar no campo do interesse e remuneração.


Podemos pensar também em carreira como a trajetória das escolhas profissionais ao longo da vida. E que pode variar com relação ao que se valoriza no trabalho naquele momento particular da vida.


"Antes fazia sentido esse trabalho, mas agora quero fazer algo que eu goste/ ganhe bem / não faça tão bem mas quero aprender / cumpre uma função social importante."


Isso considerando apenas variáveis relacionadas ao campo profissional. É muito comum também dilemas relacionados a conflitos entre as diversas esferas de vida, onde algumas escolhas priorizam a vida pessoal e social em detrimento da vida profissional, e vice-versa. As vezes um trabalho em outra cidade, estado ou país coloca em questão uma mudança radical de vida e do convívio social.


Colocar dessa forma pode soar simplista, mas cada um desses exemplos assume um significado específico na vida da pessoa que convive com esse dilema. Por isso a Orientação Profissional é um processo que se ocupa da pessoa que decide e não apenas da decisão. Esses dilemas podem atravessar questões pessoais com grande carga afetiva, difíceis de perceber e cuidar sem o auxílio adequado.


Sentidos do trabalho, da profissão e da carreira


O trabalho pode ser diversas coisas. Pode ser aquilo que traz realização na vida, aquilo que não te traz realização mas permite que se realize na vida fora dele. Pode ser mais ou menos interessante, mais ou menos cansativo, mais ou menos libertador, mais ou menos entediante.


O trabalho é uma necessidade real na vida da maioria das pessoas, mas talvez ele não precise ser só isso. Já que temos que conviver com o trabalho, se temos alguma condição de escolha, que possa dentro do possível estar alinhado com nossos interesses, dentro de nossas aptidões, remunere de forma justa e seja útil a sociedade. Ou quem sabe uma ou duas dessas coisas. Onde houver possibilidade de escolha profissional, vale a pena colocar atenção.


Quanto mais a escolha do trabalho for nossa menos angustiante será enfrentar os perrengues do dia-a-dia que qualquer carreira terá. A Orientação Profissional ajuda a olhar cuidadosamente para os impasses que dificultam a resolução desses dilemas profissionais. Eventualmente ter que aceitar o trabalho como uma fonte de renda implica em abandonar sonhos de realização profissional e vice versa.


Como o trabalho pode assumir muitos sentidos, pode se relacionar com pontos sensíveis na história de cada pessoa no decorrer de sua carreira. Esse processo pode envolver elaboração de lutos, quebra de ideais, confronto com ansiedades e reavaliação de valores pessoais.


Os dilemas comuns entre interesse, aptidão, remuneração e função sociais não abarcam toda complexidade das questões profissionais que podemos enfrentar ao longo da vida. Certamente ao ler esse texto você pode enumerar dilemas que não estão aqui, que dizem sobre sua história particular num contexto social específico. Da mesma forma pode dizer que trabalho e carreira significam outra coisa que não tem a ver com isso que foi escrito.


Aí vou dizer que essa é a parte bonita e interessante da coisa toda. Ao mesmo tempo que ilustrei uma ideia de aprendizagem humana e um contexto social mais amplo, isso serve apenas como algum parâmetro para olhar o singular, o específico e particular de cada pessoa. Não tenho uma ideia pré concebida sobre as pessoas que chegam até mim com um pedido de orientação profissional, quanto mais compreendemos seu dilema mais percebemos a manifestação da singularidade daquela história e no final, mais nos damos conta que sabíamos muito pouco do que estava por vir.



Considerações


Obviamente me empolguei com o tema, mas esse é o risco e o privilégio de escrever sobre algo que gostamos. Orientação Profissional é um campo muito interessante de estudo e prática, e tem um papel social importante e em desenvolvimento na sociedade.


Num artigo interessantíssimo sobre Teoria do Caos aplicada em orientação de carreira (http://pepsic.bvsalud.org/scielo) as autoras exploram a ideia de que a quantidade de variáveis que podem influenciar uma escolha de carreira é tão grande que conceitos da teoria do caos (como complexidade, emergência, não-linearidade, imprevisibilidade e mudanças de fase) podem ser aplicados numa orientação de carreira.


Recomendo também uma leitura atualizada desse campo (https://www.youtube.com/watch?v=PizerNxHbUw) que ilustra como as questões da orientação profissional pode estar em diálogo direto com as necessidades sociais do momento, como foi pensada sua prática na modalidade online e em outros setores da sociedade pra além da clínica individual, como a OP que conduzo.







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