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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

A Implicação e alguns problemas da (in)dependência

Atualizado: 1 de ago. de 2023

Tenho refletido sobre como questões sobre dependência aparecem de diferentes formas: dependência emocional, dependência financeira, vícios comportamentais e químicos são exemplos dos que mais escuto. Apesar de bem diferentes, e específicas na história de cada um, as formas de dependência esbarram em questões similares conforme olhamos com atenção. É sobre essas questões que pretendo escrever aqui.


Dependência como condição fundamental


Nascemos dependendo do Outro. Um bebê recém nascido não sobrevive sozinho, então se estamos aqui, sobrevivemos graças a alguém (ou algum grupo) que atendeu nossas necessidades básicas.


Tudo que foi além das necessidades básicas, precisamos aprender a pedir por não conseguirmos alcançar sozinhos. Conforme envelhecemos percebemos que as relações sociais se configuram num formato parecido, mais ou menos sofisticado que esse.


Mesmo aprendendo a linguagem dos outros e pedindo a eles não conseguimos obter exatamente o que queremos, afinal queremos cada vez mais coisas. A partir dessas frustrações somos forçados a desenvolver estratégias de satisfação alternativas:


1) podemos pedir para outra pessoa até achar alguém que atenda;

2) pedir outras coisas pra mesma pessoa até achar um pedido que ela atenda; ou

3) tentar achar isso sozinho.


Todas estratégias fadadas ao fracasso a partir do momento que o objetivo é a satisfação, a completude.


Há sempre algo faltando e a busca por preencher essa falta é o que nos leva a demandar do Outro a satisfação de nossas vontades. Até aqui falo sobre uma condição estrutural de dependência, uma que é fundamental para nos relacionarmos uns com os outros. A sociologia estuda a interdependência humana exatamente como condição humana fundamental, dependemos uns dos outros para viver e sobreviver.


Ocorre que há diversas formas de dependência do Outro, mais ou menos custosas, mais ou menos conscientes. As vezes dependemos do Outro de formas que desconhecemos mas que podem influenciar silenciosamente nossas vidas e servir como fonte de satisfação ou frustração. Num processo de análise, dentre outras coisas, investigamos nossas formas de dependência para construir maneiras um pouco mais sustentáveis de lidar com elas.


As diversas formas de dependência


Da mesma forma que, quando menores, precisávamos de ajuda pra nos alimentar mas depois aprendemos como nos alimentar sozinhos, também conquistamos formas autônomas de atender nossas necessidades. Até essa autonomia é construída na relação com os outros, aprendemos a cozinhar com o outro para então cozinhar só. Ou sustentamos relações nas quais não precisamos cozinhar e delegamos essa função e responsabilidade ao outros. Para nos alimentar necessariamente precisamos nos relacionar com outras pessoas em algum momento.


O sentido de dependência que quero tratar nesse texto é quando, por qualquer motivo que seja:


Não faço X se o outro não Y.


Por exemplo, não como se o outro não cozinha. Se posso cozinhar e comer na ausência do Outro, já não dependo dele. Talvez até possa sentir alguma satisfação ou gratidão quando cozinham para mim mas não é necessariamente uma relação de dependência. Cozinhar é um exemplo ilustrativo por ser algo concreto com que todos nos deparamos diariamente em alguma medida, mas vamos imaginar necessidades que transitam no limite da autonomia, como necessidade de atenção, de afeto ou reconhecimento. Por mais autônomo que alguém seja, oferecer afeto a si mesmo não é como cozinhar para si. Abraçar a si mesmo não é como receber ou dar um abraço. Ficar sem afeto pode parecer menos insuportável que ficar sem comer, mas nossas necessidades não atendidas sempre voltam para nos cobrar. Essas formas de dependência podem nos colocar em situações insalubres por anos.


A partir daí podemos imaginar de quantas formas diferentes uma relação de dependência pode ser construída a partir de uma de uma necessidade que atribuímos ao outro a função de atender. O outro que é responsável por atender minhas necessidades financeiras, o outro que é responsável por atender minhas necessidades emocionais, de afeto, de amor, de carinho etc.


Autonomia e independência financeira


"O inferno são os outros." Sartre

O discurso neoliberal incentiva indivíduos independentes e autônomos através da valorização da meritocracia. Um zumbido ronda os ambientes sociais (principalmente os de trabalho) pressionando as pessoas a, cada vez mais cedo, conquistarem a tão desejada independência financeira.


"Se você não conquistou, é porque não se esforçou o suficiente. Isso não tem nada a ver com a precarização das condições de trabalho, a inflação do mercado imobiliário ou a desigualdade social. Você é capaz de superar qualquer dificuldade sozinho caso se esforce o bastante. Foi demitido? Abra uma empresa. Perdeu o ônibus? Seja o ônibus."


Há diversos interesses em jogo na tentativa de fazer com que as pessoas acreditem que problemas coletivos, globais ou locais, possuem soluções individuais. A personalização da vida oferece recursos suficientes para que cada pessoa viva no próprio mundo virtual e vá cada vez mais perdendo a noção de coletividade, tanto na identificação dos problemas sociais quanto na solução.


Desviando da sedução da personalização da vida e olhando para a realidade concreta, nos deparamos com o fato de que, mesmo uma vida isolada pagando as próprias contas e "não devendo nada a ninguém" só foi possível porque outras pessoas tornaram isso possível, porque a estrutura social permitiu que se alcançasse e permite que se sustente essa vida. Até pra ter uma vida autônoma e independente dependemos de outras pessoas. Nesses casos a autonomia não passa de uma ilusão. Mesmo o eremita que planta a própria comida, mora longe da civilização, afastado de tudo e todos, precisou aprender com outras pessoas a sobreviver sozinho. E sobreviver, não viver. Os filmes Na natureza Selvagem (https://www.youtube.com/watch?v=4u07rpXrTz8) e Capitão Fantástico (https://www.youtube.com/watch?v=YgRo_taGWPg) ilustram bem isso.


A autonomia que penso aqui é a condição de fazer escolhas, abraçar os riscos e encarar as consequências. Uma ideia próxima do que entendo como liberdade. É essa autonomia que pode entrar em curto-circuito com a ideia de dependência. Ali onde dependo do outro para fazer escolhas, não tenho autonomia e não percebo as consequências dessa escolha como responsabilidade minha, mas, sim, do outro.


Que alívio e que maldição...


Esse é o grande curto-circuito neurótico que circula a clínica. A linha tênue que, ao mesmo tempo, liga e separa a dependência da independência. O que é minha parte e o que é parte do Outro? Uma grande fonte de conflitos, angústias e dilemas que vão nos acompanhar ao longo da vida em situações com diversos graus de complexidade.


O que posso pontuar aqui é que temos uma inclinação a nos submeter ao Outro e evitar o lugar angustiante da implicação, que é justamente uma das condições de análise: a retificação subjetiva.

"Qual sua participação na desordem da qual se queixa?" Freud

Um por todos - O mestre


Cada cultura construiu seus artifícios para lidar com o conflito eu-outro. A filosofia tem vertentes de possíveis respostas pra esse dilema, mas todo caminho nos implica um exercício ético.


A guerra é uma forma de responder esse conflito, o uso da força e da violência para impor uma ideia sobre outra. O diálogo é outra forma de resposta, procurando um ponto de coexistência entre ideias diferentes. O mestre é outra forma de resposta a qual temos uma tendência a nos inclinar, eu não decido o conflito mas coloco a responsabilidade dessa decisão em outra pessoa.


A princípio pode parecer uma ideia sedutora principalmente aos neuróticos: não preciso decidir, basta eleger uma figura confiável de liderança a qual deposito todas minhas apostas e expectativas, se algo der errado, não fui eu, foi essa pessoa. Quase como se retornássemos aos primeiros momentos de vida, quando toda falta seria preenchida por outra pessoa e não tínhamos que decidir, escolher ou nos responsabilizar por nada.


Daí vem o perigo de concentrar o poder e a responsabilidade em um único indivíduo. A formação de grupos e seitas que buscam apoiar, a todo custo, uma pessoa já se mostrou problemática na história da humanidade, e recentemente na história do Brasil. Ainda que esse líder ou mestre faça o absurdo, eu continuo apoiando que ele tenha todo esse poder de decisão, mesmo que o absurdo recaia sobre mim, não foi minha responsabilidade. Um livro que retrata precisamente essa problemática é Psicologia das massas e análise do eu (1921) onde Freud analisa o processo de formação de massas simultaneamente ao desaparecimento das singularidades individuais.


O outro lado dessa moeda, é quando existe um empenho em ocupar esse papel onde, a qualquer custo, procuramos abraçar todas responsabilidades e assumir todo poder de decisão mesmo das coisas que não são nossas responsabilidades. Muitas vezes esse lugar traz uma exaustão e uma confusão sobre o que seria responsabilidade do eu ou do outro. Ocorre que não passa de mais uma forma de recusar o convite ao exercício ético sobre o que é responsabilidade minha e o que é do outro. Se tudo for responsabilidade minha, ótimo, não preciso pensar mais nisso... Se tudo for responsabilidade do outro, também.


Tanto uma quanto a outra não necessariamente são facilmente percebidas. Podemos assumir alguma dessas funções sem ter clareza do porquê e de qual conflito específico elas estão respondendo. Numa análise podemos reconhecer os conflitos com os quais estamos envolvidos e chegar em formas mais sustentáveis de nos posicionar com relação a eles.


Leis e regras


Para evitar que nós sucumbíssemos a sedução de não pensarmos na parte que nos cabe nos conflitos que nos inserimos criamos regras que apontam para os limites do direito e dos deveres de cada pessoa, de modo a não permitir que alguém fique acima delas. Elas podem ser desde etiquetas sociais do que é bem visto ou mal visto, até leis com punições mais ou menos severas.


Discursivamente, relações de dependência são ditas usando imperativos. Uma afirmação com poder de autoridade sustenta toda dependência. Vai ser um sentido fixo que não mostra espaço pra qualquer possibilidade fora dele.


Por exemplo, uma relação de dependência com álcool: "não posso ficar sem álcool"


  • O que acontece quando fica sem álcool?

- Fico agressivo

- Tenho crise de abstinência

- Sofro

- Não consigo dormir

- Não sei

- (...)

  • Por quê, especificamente, álcool? Não teria outra saída para:

- Agressividade?

- Crise de abstinência?

- Sofrimento?

- Sono?

- (...)


Conforme vamos investigando e questionando essa afirmação, percebemos como ela assume um peso de lei, de verdade inquestionável na medida em que esse sentido não se move. As vezes só o deslocamento desse sentido pode modificar a relação de dependência.


Não que seja algo fácil, até porque não nos damos conta de todas leis e regras que seguimos, ainda que nos causem sofrimento. Chegar nas leis que nos regem pode ser um trabalho de anos de análise, e mesmo chegando lá pode não ser tão simples o deslocamento de leis que seguimos, religiosamente, durante boa parte de nossas vidas. E mesmo ao percebê-las podemos optar por continuar fazendo elas valerem como verdade absoluta.


É no exercício de tensão com nossas regras que se revela o quão dependentes somos delas. Leis cumprem um papel fundamental no exercício da liberdade e no movimento do desejo, mas podem assumir um caráter inflamado e supersaturado em nossas vidas, afetando nossas relações, nosso trabalho e nos deixando exaustos.


Evitando vias-únicas


Não é pela dependência ser uma condição que não podemos experimentar diferentes formas de nos relacionar com ela, de modo que não sejamos tão reféns nem tão solitários. Comer é uma necessidade, mas há diversas formas de se relacionar com o comer.


Toda relação de dependência é como uma rua sem saída que desemboca em sofrimento, nesse sentido toda relação de dependência pode ser tratada.


Na análise podemos nos deparar com as ruas sem saída que entramos, pensar como chegamos até ali e traçar uma nova rota para chegar em novos destinos. Usar metáforas como essa pode fazer você pensar "nossa, parece tão simples, tão fácil", mas não é. As vezes o que nos mantém numa rua sem saída pode ser desde um GPS não-confiável ou um pneu furado, até o medo de se movimentar. Mas a vida é movimento. Que possamos, ao menos, escolher nossos caminhos.





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