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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

Marcas da discriminação: sentimento de inadequação e auto-exigência

Atualizado: 24 de set.

Quem enfrenta algum tipo de preconceito ou discriminação social (de raça, gênero, orientação sexual, corpo, classe socioeconômica e todos outros...) frequentemente é invadido por um sentimento de inadequação. Questões como "será que eu deveria estar aqui?", "será que esse lugar (vaga, relacionamento, cargo) é realmente pra mim?", "será que eu fiz alguma coisa errada?" aparecem sem causa óbvia. Esse sentimento pode ser mais ou menos silencioso mas sempre te acompanha quando está sendo observado pelo outro.


Essa inadequação convida a ideia mais ou menos visível de "preciso fazer um pouco mais do que os outros, senão...". Todo mundo pode pensar nisso em algum momento e se identificar com esse pensamento, mas a experiência de discriminação acontece de um jeito que esse pensamento aparece como uma sensação estranha, difícil de explicar e constante, algo como um receio de mostrar qualquer falha e ser exposto como alguém que tem "algo errado".

Diferenças e igualdade

“...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Boaventura de Souza Santos

Não somos todos iguais, e que bom. Quando olhamos para um grupo vasto de pessoas podemos enumerar várias semelhanças e diferenças entre as pessoas. Como vivemos em uma sociedade desigual, certas diferenças desfavorecem as pessoas em diversas situações e esse mecanismo é historicamente reproduzido e consolidado em diversos espaços da sociedade.


No Brasil, quando falamos por exemplo em assédio sexual, sabemos que há uma diferença de gênero que vai dizer a probabilidade de você passar por esse tipo de experiência. Mulheres são mais assediadas que homens. Quando falamos sobre violência policial, sabemos que há uma diferença de raça que vai dizer a probabilidade de você passar por esse tipo de experiência. Pessoas negras sofrem mais abuso de poder policial que pessoas brancas. E por aí vai...


Racionalmente essa diferença de tratamento não faz sentido. O que cor da pele tem a ver com violência policial e gênero tem a ver com assédio? Aí que percebemos que historicamente faz algum sentido. A história da humanidade não é a história da razão, os povos de todo mundo se organizam por crenças e muitas vezes essas crenças eram irracionais, mas orientava a vida das pessoas mesmo assim.


Toda cultura e sociedade tem uma noção do que seria um comportamento adequado e um comportamento inadequado, o que é esperado que uma pessoa faça e o que é esperado que uma pessoa não faça. Isso é passado de geração em geração. Essa passagem do comportamento adequado nem sempre acontece com uma explicação racional e cuidadosa, as vezes as pessoas simplesmente copiam porque "todo mundo sempre fez assim", as vezes as pessoas são forçadas a ter determinado comportamento a duras penas se desviarem dele. Assim, formas sutis e irracionais de discriminação são reproduzidas a partir de preconceitos históricos.


A história dos nossos preconceitos


Uma certa forma de tratar as mulheres foi colocada como ideal e passada adiante geração após geração sem ser questionada. Numa sequência de meninos buscando referências masculinas e repetindo o mesmo comportamento, gerações foram recompensados pela presença ou punidos pela ausência desse "comportamento ideal" até que chegamos hoje numa situação desigual de gênero. Uma situação que nos atravessa querendo ou não.


Aí entra uma das importâncias de se conhecer história, principalmente nossa história. Quando sabemos que nosso país foi construído em cima de 1) mão de obra escrava de pessoas negras do continente africano e povos indígenas originários e 2) crescimento populacional apoiado em violência sexual contra mulheres, começa a fazer um sentido histórico termos chegado nessa situação atual. Quando passamos por uma Ditadura Militar onde torturadores não só saíram impunes como foram homenageados, faz um sentido histórico vivermos num país onde a violência sai impune ou é homenageada, mesmo quando realizada pelo presidente. Sem perceber, naturalizamos a objetificação das mulheres (e de tudo que é ligado ao feminino) e sua valorização a partir de uma função reprodutiva. E naturalizamos a violência policial contra corpos negros, tratando como "potenciais suspeitos" quando recusamos um emprego, um serviço, atravessamos a rua, escondemos a bolsa e toda sutileza que mantem a estrutura de poder como está.


- "Ah Gabriel, mas eu não sou machista/racista/lgbtfóbico, eu respeito todo mundo, os outros que são"

Então, essa seria a voz da razão. Do que conseguimos perceber e nos responsabilizar, da moral individual com relação aos preconceitos. Porém violências históricas passam a diante, geração após geração sem ser questionadas por essa voz e quem percebe a violência costuma ser quem recebe e não quem reproduz. Por isso a discriminação é reproduzida por tantas vias sem percebermos, e por isso dizemos que certas formas de preconceito são estruturais, pois elas não dependem da sua atitude moral, elas fazem parte de uma estrutura social que preserva lugares de poder.


Não ter a intenção de ser violento ou desrespeitar é importante, mas de forma alguma garante que alguém não seja violento ou desrespeitoso. Mesmo sendo não-violento e respeitoso, a estrutura de poder continua lá.

As violências mais fáceis de ver são mais fáceis de ser evitadas com o uso da boa intenção, uma agressão física, um bullyng, uma humilhação são coisas que ao ver de longe você pode reconhecer um mau e dizer que não faz parte disso. Porém os tipos mais sutis de violência, os turvos e invisíveis são aqueles que passam batido e podem marcar um trauma pelo acúmulo com o tempo, algo crônico. Por exemplo a segregação, a exclusão, a intimidação, a negligência, o silenciamento...

Os tipos de violência


Violência é uma palavra forte, né? Pois é, mas uma das formas de violência é ser violento e não chamar de violência. Assim quem está sofrendo a violência não tem seu sofrimento legitimado e muitas vezes acaba se culpando pela violência que sofreu. Por isso nomear como violência é um convite que faço pra justamente causar esse espanto e estranhamento.


A violência escalona. O que pode começar com um empurrão, quando muito constante um dia pode evoluir para segurar o braço. O que pode evoluir para um tapa e por aí vai... As manifestações sutis de violência são perigosas porque conforme nos habituamos a elas, vão escalonando para formas mais explícitas de violência. Nesse processo gradual vai ficando cada vez mais difícil para quem pratica a violência discernir o que é uma violência sutil de uma violência explícita quando "sempre foi assim" e "todo mundo faz".


Tomando como exemplo homofobia. A aversão por relações homoeróticas é tão intensa que escalona para aversão a uma relação homoafetiva. O afeto de pessoas do mesmo gênero passa a ser intolerável mesmo quando estamos falando de pessoas heterossexuais. Há inúmeros exemplos: seja na manifestação de afeto entre pai e filho (2011) ou de irmãos (abraco-de-irmaos).


Outro problema de violências estruturais e históricas é que o indivíduo que apresenta uma diferença alvo de violência é exposto a elas desde muito cedo. Pode ter um acúmulo de dores e cicatrizes contidas que nunca tiveram voz e infeccionaram por dentro. Ou acaba acontecendo algo parecido com o que acontece com um elefante de circo. Desde pequeno o elefante é amarrado no chão por uma pequena estaca e não tem força o suficiente pra se soltar. Depois de tentar muitas vezes se soltar, ele para de fazer força e tentar se libertar. Aí mesmo depois que cresce e teria força pra isso, ele continua preso a estaca.

Se você é a única pessoa questionando algo, por mais óbvio que seja, pode ser atravessado por uma sensação de que estaria exagerando, enlouquecendo, reclamando atoa e pode ter essa sensação dita a você por alguém que não sofre e não vê essa violência, te levando a duvidar de si mesmo e reforçar todas essas sensações.


Isso não apaga a dor de ser discriminado, e essa dor que traz a sensação de inadequação.


A carga mental de uma luta invisível


A pessoa inferiorizada por uma diferença chega a ser privada de coisas que são relevantes na construção da personalidade, nos sonhos pra vida e no enfrentamento de desafios. Essas coisas podem ter uma materialidade concreta como condições de trabalho justas, liberdade de ir e vir, segurança, casa, comida, emprego ou podem ter uma propriedade emocional e psicológica como atenção, reconhecimento, afeto e amor.


Quando falamos de necessidades humanas básicas é importante considerar atenção, reconhecimento, afeto e amor. A pessoa que, por uma diferença de raça, corpo, gênero, orientação sexual é privada dessas necessidades pode ficar marcada por isso.


Por que fulana foi escolhida e eu não? O que ele tem que não tenho? O que tenho que fazer pra ter isso? Quem eu preciso ser pra ter isso?


Eventualmente vem um desejo de compensação dessa diferença pra ter acesso à atenção, reconhecimento, afeto e amor. Como se a diferença convencesse a pessoa que não é merecedora disso. Essa compensação pode se manifestar em uma forte necessidade de se destacar, ser o melhor. Afinal, precisa fazer mais do que quem não tem essa diferença para ter o mesmo reconhecimento. Todos os corpos subalternizados enfrentam isso em certa medida.


Quando falamos de diferença sempre falamos de um contraste. Se algo é frio, é porque não é quente, e existe um contraste entre frio e quente. Se sou alto, é porque existe um outro baixo, e existe um contraste entre alto e baixo.


Se não fui escolhido, é porque outro foi. Se não tenho, é porque outro tem. O lado da moeda da diferença que não está sendo inferiorizado é o lado vantajoso do privilégio.

"Ah, Gabriel então você tá falando que ser um homem cis branco e hétero é confortável."


Não, porque ser humano já é desconfortável. Mas existe uma posição de vantagem por não experimentar desconforto e violência em determinadas situações. É isso que chamamos de privilégio.


- Você homem que faz o mesmo trabalho que uma mulher tem grandes chances de receber mais que ela. Você que quer dar uma volta em algum lugar público provavelmente não vai ficar preocupado se tem alguém te olhando, se tem alguém te seguindo e se alguém pode te assediar. Você homem provavelmente não foi tão responsável pela limpeza da casa e cuidado de crianças quanto as mulheres que cresceram com você. - Da mesma forma que você heterossexual provavelmente não sai como casal em público preocupado se você está demonstrando afeto demais e pode ser alvo de violência. Ou ao se casar com alguém ficar preocupado se a lei vai permitir que compartilhe seus bens com essa pessoa no caso da sua morte. Ou se vai conseguir adotar uma criança. - E você branco não vai se preocupar em andar sempre com documento, e nota fiscal pra quando for tratado como suspeito não ser preso ou sofrer violência policial, ou mesmo ser assassinado.


- E você pessoa da classe média não precisa se preocupar se o seu filho vai ter comida esse mês e se só depende de você.


Todas essas preocupações são turvas ou invisíveis pra quem olha do outro lado da moeda da diferença, mas, custosas, cansativas e desconfortáveis pra quem convive com elas. Cada um encontra um caminho para suas cargas.


Um processo de análise vai no sentido de poder olhar para nossas cargas e nos questionar até que ponto são da ordem do inevitável e até que ponto são pequenas estacas no chão nas quais nos acostumamos estar presos

Considerações Finais


São tantas experiências ruins que alguém passa até se convencer que não merece amor por uma diferença, que coloca bastante energia em aniquilar essa diferença e se parecer mais com o outro que é amado. Essa violência contra si mesmo pode virar um negócio pesado e doloroso. Será que a única vida possível é essa em que precisamos carregar mais peso do que conseguimos?


Refletir sobre o mal que fazemos e recebemos ajuda a olhar para o invisível e falar o indizível. É nesse resgate do enigmático e do inacessível que abrimos espaço para mudança.


O elefante circense do século XXI vê o circo pegando fogo e é convencido que tem que continuar ali, não só por acreditar que não consegue remover os grilhões que o prendem, mas porque aguenta o calor do fogo, porque precisa continuar no circo e não vê sua vida fora dali.


Nem tudo é circo, há vida fora dos circos que sempre nos acostumamos.

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