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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

Minha abordagem na terapia

Atualizado: 8 de abr.

Começo esse texto corrigindo o título propositalmente: a abordagem não é minha, ela existe independente de mim, quando eu não estiver aqui ela continuará existindo. Talvez faça mais sentido falar sobre a abordagem que eu empresto para trabalhar. Vamos começar pensando o que é uma abordagem.

Há duas metáforas que são minhas favoritas para entender o que é uma abordagem, então vou responder essa questão com elas. Segura firme que esse não é um assunto simples, mas prometo me esforçar pra simplificar o máximo que conseguir.


A lente dos meus óculos


Quantos tipos de óculos existem? Há os de grau que corrigem a visão para enxergar melhor, há os de sol, que permitem você enxergar melhor mesmo diante de muita claridade, há os de mergulho que permitem você enxergar melhor debaixo d'água e há os coloridos que fazem tudo que você vê se misturar com uma cor a ponto de não conseguir saber exatamente a cor das coisas. Por exemplo quando seu óculos tem uma lente vermelha e faz com que tudo que é azul pareça roxo e tudo que é branco pareça rosa. Essa metáfora serve pra entender que:


A abordagem é um óculos que vai te ajudar a enxergar melhor uma pessoa mas nunca é 100% transparente.

Toda teoria tem uma cor, algo peculiar e específico que faz ela ser diferente de outra e toda teoria tem o objetivo de fazer com que enxerguemos melhor.

Vamos mais fundo nessa metáfora já que ela permite. Imagine um óculos de lente verde e um óculos de lente marrom como o da foto. Imagine então que você tem que olhar para uma floresta e dizer o que você vê. Essa floresta está repleta de troncos marrons e folhas verdes.


Quando você coloca os óculos verdes, você não enxerga as folhas, só os troncos. Pra você a floresta será composta de troncos e é com isso que você vai trabalhar.

Quando você coloca os óculos marrons, você não enxerga os troncos, só as folhas. Pra você a floresta será composta de folhas apenas e é com isso que você vai trabalhar.


As pessoas que buscam terapia são como as florestas, cada uma vai ter um pedido diferente. Uma floresta vai querer ter arvores mais baixas para entrar mais luz do sol, outra vai querer ter árvores diferentes, pra nutrir o solo, outra vai querer mais animais em seu território, enfim cada uma com suas questões, dores e ideias.


O psicólogo vai estar usando os óculos da cor de sua abordagem o tempo todo para ajudar nessas demandas. Quanto mais o psicólogo aprende a ver com esse óculos, mais coisas consegue perceber. A ponto de o psicólogo de óculos verdes que enxerga só os troncos se tornar um especialista em troncos, e o psicólogo de óculos marrons que só enxerga as folhas se tornar um especialista em folhas.


Toda abordagem ajuda o psicólogo a enxergar melhor com ela do que sem ela


Meu braço direito segurando minha ferramenta favorita


Sou uma pessoa destra, logo pra mim é mais fácil escrever, abrir maçanetas, torneiras e mexer no celular com a mão direita. Quando tento fazer qualquer uma dessas coisas com a mão esquerda, é mais difícil. Posso até conseguir, mas o domínio que tenho com a mão direita é sem comparação.


A terapia, seria um trabalho artesanal cheio de detalhes, como fazer uma escultura.

Imagine o quanto seria difícil fazer uma escultura dessas só com a mão esquerda para alguém destro. A abordagem aqui não seria apenas a mão direita, mas também usar sua ferramenta favorita com essa mão direita. Em algum momento na vida já se dedicou a escrever ou desenhar da forma mais bonita possível e sentir falta daquela caneta ou lápis favorito que parece amplificar suas habilidades de escrita e desenho? Essa caneta ou lápis também representa bem uma abordagem se o escrever e desenhar representar a terapia.


O que é uma abordagem de fato?


Abordagem é um conjunto de conhecimentos teóricos da psicologia que foram forjados a altas temperaturas no rigor científico. Esses conhecimentos teóricos fornecem ao psicólogo:


  • Uma compreensão de ser humano

  • Uma compreensão de mundo

  • Uma estratégia para conhecer e auxiliar um ser humano inserido nesse mundo

  • Táticas para abordar cada pessoa e seus dilemas

  • Técnicas que o ajudem a cumprir sua estratégia e suas táticas de forma eficaz

Todos esses conhecimentos servem como ferramentas de trabalho, e possibilitam jeitos de colocar os objetivos da terapia em prática. A abordagem oferece essas ferramentas, mas é o psicólogo que desenvolve maestria em utilizá-las.

Uma espada é uma ferramenta que não varia tanto. Mas o que um mestre espadachim faz com uma espada é bem diferente do que um aprendiz faz com a mesma espada.

Abordagens seguem o mesmo princípio. Cada espadachim vai ter um estilo de luta, uma experiência de combate, movimentos favoritos e sua espada favorita. Tudo que escrevi até agora é resultado da tentativa de resumir um tema complexo, as metáforas me ajudam nesse processo mas esse entendimento ainda é limitado e bastante pessoal.


Abordagem que utilizo: Terapia Narrativa


Minha abordagem explica minha dificuldade em evitar metáforas. Tudo que eu disser sobre ela será uma traição a tudo que ela realmente é, mas espero que você que veio até aqui pra entender minha abordagem saia dessa leitura satisfeito, então falarei dos pontos-chave dessa abordagem que a diferencia das outras para mim.


Não tem limite do quanto a gente pode conhecer uma abordagem, psicólogo algum simplesmente para de estudar. Então talvez algum especialista em outra abordagem pode comentar nesse post dizendo que elas não são tão diferentes nisso, e eu vou adorar se isso acontecer. Vale mencionar que os precursores da minha abordagem são Michael White e David Epston.


1) O entendimento de que cura é uma forma de justiça e justiça é uma forma de cura.


Na Terapia Narrativa, existe uma forte preocupação com o contexto social com o qual a pessoa se relaciona. Muitas vezes os problemas trazidos na terapia são efeitos de problemas sociais e não individuais. Então existe o entendimento de que toda pessoa tem o direito de ter uma vida livre dos efeitos dos problemas que enfrenta, se entender separada deles e capaz de responder a eles seguindo seus próprios valores. Toda pessoa é maior que qualquer problema que enfrente.


2) Foco na construção de sentidos por meio da linguagem


Na TN mais importante do que o que aconteceu é que história você conta sobre o que aconteceu. Entendemos que algumas histórias diminuem possibilidades de ação e outras aumentam. Nela, minha postura é conhecer as histórias em todos detalhes até encontrar novas possibilidades que façam sentido junto com a pessoa. Metáforas são uma forma de encontrar possibilidades que façam sentido usando a linguagem, por isso são minhas ferramentas favoritas.


3) Foco no que é possível e fundamental


Na TN o autoconhecimento prioriza esses dois pontos. Ajudar a pessoa a entrar em contato com que é fundamental para sua vida e possível de ser alcançado. Isso envolve o ato de escolher, e consequentemente abrir mão, e a percepção de limites dentro do que se quer. Entendo que esses pontos oferecem ferramentas que a pessoa pode levar para vida toda pra além da terapia ao mesmo tempo que a ajudam a se manter em movimento e sustentar uma imagem consistente sobre si.


4) A pessoa é especialista na própria vida e o psicólogo é especialista em conversar sobre a vida da pessoa


Toda pessoa que me procura me ensina sobre ela, seus dilemas e suas dificuldades específicas. Toda pessoa escolhe quais caminhos e como quer percorrê-los, eu apenas a acompanho em um trajeto da sua vida, e ajudo a construir ferramentas que vai levar para a vida toda. Então aqui há uma preocupação especial em cuidar das relações de poder que envolvem a pessoa pra desenvolver sua autonomia, ainda mais no atravessamento de poder na própria relação paciente - terapeuta.


5) A pessoa é protagonista da conversa mas a conversa sempre é uma relação entre duas pessoas

Na TN, entendemos que o foco das conversas é mais a relação de uma pessoa com outra do que as pessoas sozinhas independente de suas relações. Sempre estamos em relações com outras pessoas e a terapia também acontece numa relação (de duas ou mais pessoas).

Essa ideia oferece o entendimento de que raramente estamos 100% sozinhos portanto raramente somos 100% responsáveis por alguma coisa. Tudo que acontece em uma relação é de responsabilidade da relação e não de pessoas individualmente.

Então, antes de mais nada, meu papel como psicólogo é cuidar para construir junto com a pessoa formas preferidas de estar nessa relação comigo assim descobrimos o que é importante pra essa pessoa estar bem em uma relação. Boa parte das autodescobertas da terapia acontecem aqui.


Atualização da discussão


Trabalhei com Terapia Narrativa por volta de 2 anos na clínica. Mas é válido considerar também 3 anos de estudo no final da faculdade começando por um projeto de iniciação científica sobre investigação apreciativa - uma ferramenta inspirada no Imagine Chicago para produzir engajamento coletivo em torno de uma causa comum - e finalizando com um estágio em aconselhamento psicológico de sessão única utilizando ferramentas da Terapia Narrativa.


Me dizia terapeuta narrativo, mas hoje me apresento como psicoterapeuta com percurso na Psicanálise há 3 anos. Durante essa transição meu repertório teórico e técnico passou por algumas mudanças radicais por um lado, mas mantive certos valores e inclinações éticas por outro.


O que se manteve?


  • Desde sempre meu interesse pela linguagem. Toda abordagem que valoriza a forma que a linguagem constrói o mundo e nos faz ser construídos por ele tem minha atenção. Minha primeira experiência com terapia foi com uma psicóloga comportamental por 3 anos e meio e essa procura teve como motivação meus estudos sobre comportamento verbal. Minha experiência seguinte foi com uma terapeuta construcionista social por 2 anos, também pela valorização da linguagem na construção da realidade. E isso me trouxe até a Psicanálise até um autor que se debruçou de tal forma na relação entre linguagem e clínica que tem 28 anos de produção sobre esse tópico. Jacques Lacan, dentre todos que tive acesso até hoje, é quem mais desenvolveu a questão da linguagem na clínica. E é isso que deu sentido a essa transição e segue fazendo sentido pelo dialogo de seus textos com o dia a dia do atendimento clínico.

  • A preocupação com o contexto social dos pacientes. Apesar de existir um movimento relativamente recente, na ultima década, da ciência formalizar sua preocupação em não separar os indivíduos do meio social que vivem isso sempre aconteceu naturalmente em todas abordagens que se preze conforme os teóricos acumulavam tempo de formação. Como nem sempre na Psicologia havia essa preocupação em não individualizar questões sociais, abordagens que colocavam foco nessa causa se diferenciavam por parecer mais atualizadas, mas atualmente a ciência avançou de tal forma que quando se trata de compreender o ser humano é impossível separá-lo de seu contexto social, político e cultural.

  • As pessoas seguem sendo especialistas na própria vida e eu no processo da conversa. Esse valor tem a ver com não sobrepor minhas verdades em cima de outra pessoa em nome da Psicologia ou da Psicanálise, também com um cuidado para que a própria pessoa produza um saber sobre si.


O que mudou?


  • Percebi que a melhor forma de se focar no que é possível é reconhecer o impossível. Em abordagens da psicologia e via poucos recursos teóricos para evitar cair numa "lógica coach" de acreditar nos sonhos e nos objetivos cegamente até alcançá-los ou morrer tentando. Percebi que muitas pessoas sofriam dessa lógica e se esforçavam até exaustão em prol de sonhos impossíveis, e reconhecer a impossibilidade era o que permitia a abertura para sonhos mais possíveis e portanto menos frustrantes, menos exaustivos, menos sofridos um pouco menos neuróticos.

  • Reconhecer que as pessoas são especialistas na própria vida não significa que elas sempre poderão achar sozinhas as soluções para seus problemas. Reconhecer o inconsciente significa reconhecer o que não temos controle, e nossos limites de forma que há momentos em que precisamos sim dos outros, precisamos de ajuda, de suporte social e condições pra existir. Ter essa percepção me permitiu sair de um posicionamento de responsabilização individual do paciente para reconhecer os papeis da rede social do paciente, comigo incluso nela. Somos bombardeados por dispositivos ideológicos que buscam nos alienar em questões estruturais da sociedade e tratá-las como questões individuais, para reconhecer a singularidade dos sujeitos é importante conhecer também esses dispositivos.

  • Foco na desconstrução de sentidos. Essa talvez tenha sido a mudança mais significativa. Na Terapia Narrativa a preocupação era a construção de novos sentidos que possibilitassem mudanças significativas e desejáveis na vida das pessoas, porém ela não considerava pessoas que sofrem por excesso de sentido. Por mais que houvesse um cuidado ao dizer que os sentidos deveriam ser produzidos juntos e na relação, há constantemente um risco clínico de colocarmos um sentido nosso ao caldeirão de sentidos do paciente e essa combinação pode ser explosiva por melhor que seja a intenção. A Psicanálise oferece uma ferramenta poderosa para evitar esse tipo de situação, que é o foco no significante em detrimento do significado. Lacan oferece um repertório técnico-teórico que permite que foquemos na escuta/leitura dos significantes nos deixando advertidos (mas nunca salvos) das armadilhas do sentido.


O que me levou e o que me mantém na Psicanálise


Cheguei na psicanálise especialista na construção de sentidos e sofrendo por excesso de sentido. Minhas formas de me ajudar envolviam construir mais sentidos e isso era uma estratégia de esconder coisas sem sentido que me atravessavam. Algo transformador acontece quando encontramos espaço pro sem-sentido que nos acontece e nos atravessa.


Parece tão difícil encontrar um espaço pra qualquer falta hoje em dia, a falta de sentido não seria diferente. Pra cada coisa que nos acontece há dezenas de explicações, opiniões, elogios e ofensas ao alcance de nossas mãos. A mentalidade de quem precisou se adaptar ao ritmo acelerado da internet sofre por nunca conseguir alcançar essa adaptação por uma questão muito simples, somos humanos e não máquinas. Nos distanciamos do nosso próprio tempo para tentar acompanhar o tempo do mundo virtualmente.


A clínica online é receptiva pra quem habita o mundo online e sofre com ele. Me assusta a aceleração que vivemos hoje e o sofrimento por excessos. Vejo na Psicanálise uma ferramenta de contracultura, uma maneira de dizer não ao sentido da normalidade pra poder dizer sim a singularidade. Todos estamos sujeitos a ceder às pressões sociais na busca por reconhecimento, a psicanálise reconhece o conflito entre essa alienação estrutural no desejo do Outro e nosso próprio desejo. Reconhecer esse lugar de desencontro, de incompletude e de falta é o que nos dá condições para sermos seres faltantes inseridos no mundo social.


Meu percurso em análise tem se desenhado como um caminho pra desejar com um pouco mais de coragem e menos alienação. A ideia por enquanto é que não me torne objeto dos meus traumas.

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1 Comment


pedrovec20
Jun 11, 2020

Ótimo uso das metáforas, torna o texto mais leve e de fácil entendimento. Parabéns!

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