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Foto do escritorGabriel Fernandes de Oliveira

Uma vida sem final de expediente: Isolamento e trabalho online

Atualizado: 24 de abr. de 2022

Nesse texto te convido a refletir comigo sobre a relação que estabelecemos entre a vida e o trabalho, e qual importância da pausa e do descanso nessa relação. Essa reflexão foi inspirada na leitura do livro Sociedade do Cansaço de Byung-Chul Han


Momentos de vida plena


Lembro bem da sensação libertadora de ouvir o sinal da escola tocar anunciando o fim das aulas naquele dia. Colegas eufóricos guardando seu material indo apressados e sorridentes até a saída. Voltava pra casa a pé e em grupo, conversando e fazendo graça. Ao chegar em casa almoçava, fazia as tarefas do dia e suspirava de alívio o momento de descansar. Aproveitava da forma que dava até a próxima tarefa e o próximo dia, mas como aproveitava... como era boa a sensação de dever cumprido que acompanhava os momentos de descanso e diversão.


Quando era criança o descanso e a diversão eram mais plenos e satisfatórios, quando tento me lembrar vem a imagem de dias ensolarados, risos espontâneos e despreocupados, a experiência de deitar na grama, olhar pro céu, fechar os olhos e não ser invadido por preocupação alguma. No descanso e na diversão em paz com os deveres, experimentava um misto de gratificação, alívio e prazer simplesmente por estar vivo, um momento em que a vida é plena.


O apelo à identidade


Crescer é em alguma medida se acostumar com novas responsabilidades e novos deveres. Se era possível ficar despreocupado com as contas para pagar é porque tinha alguém pagando as contas. No crescer sutilmente vamos absorvendo demandas sociais sobre quais são nossos deveres para poder conviver em sociedade, família, escola, amigos, trabalho... A forma que respondemos a essas demandas vai construindo nosso senso de identidade. A noção de mundo e de nós mesmos vai sendo construída de forma dialética, ou seja, pra cada ideia de que mundo é esse, tem uma ideia de quem sou eu nesse mundo.


A popularização da internet que veio com a globalização aumentou o tamanho do mundo ao mesmo tempo em que trouxe apelo por afirmar uma identidade nesse mundo. Uma coisa é saber quem é você num grupo de dezenas de pessoas, outra coisa é pensar num planeta de 8 bilhões. Já pode ser penoso construir um senso de identidade em resposta as demandas das pessoas que fazem parte diretamente da sua vida, mas pode ser mais penoso quando a identidade assume uma forma mais pública e global, sendo convocada a se posicionar diante de mais demandas sociais do que consegue acompanhar.


O verbo publicar nunca foi tão comum. Ter um perfil nas redes sociais e publicar um pensamento, um momento, uma ação, uma foto ou um texto está em boa parte da vida cotidiana de quem participa da vida pública online. Os anseios e angústias de um "cidadão virtual" diferem dos cidadãos offline e constroem subjetividades e identidades diferentes. A participação no espaço online molda a percepção do que é a sociedade e de quem somos nós nessa sociedade, seguindo as regras do mundo online.


Adolescentes procurando cirurgias plásticas que as façam parecer mais com filtros do Instagram é um fenômeno típico de uma geração que cresceu no mundo virtual. Mas de forma mais sutil, todos nós que participamos desse meio somos influenciados mais ou menos por esse ambiente.


Público e Privado


Aos poucos, a vida online foi ocupando espaço da vida offline. Quanto tempo de nossos dias não passamos assistindo a publicação da vida de alguém ou publicando a nossa? Produzindo e consumindo conteúdo? A vida privada que permite o repouso das pressões sociais vindas do olhar do outro foi cedendo espaço à vida exposta e sempre atenta ao olhar do outro.


Há algo de muito precioso na experiência de ser avisado que tem um pedaço de couve no seu dente que foi perdido no espaço público online. O manejo da própria imagem parece ter uma carga maior do que no espaço público offline, exigindo um estado mais vigilante e criterioso com ela. Chamadas de vídeo contam com uma miniatura de nossa própria imagem a nossa disposição e avaliação. Antes de compartilhar uma foto, vídeo, ou ideia, é possível observar atentamente várias vezes, selecionar a melhor, ou até editar para eliminar "imperfeições". Essa imagem não remete só à aparência física, mas tudo de nossa identidade que queremos mostrar ao outro, incluindo nossos valores, interesses, posicionamentos políticos e ideológicos.


Se o espaço público offline mais hostil pode conter o risco de violência física, o espaço público online mais hostil contem o risco de toda violência não física, desde de ofensa, exclusão e humilhação até manifestações de ódio e cyberbullyng. A cultura do cancelamento representa um estado vigilante da comunidade online diante de tropeços, escorregões, falhas. Se de um lado isso mostra uma reação coletiva que condena práticas de violência e opressão, de outro oferece apoio a violências virtuais desmedidas à quem expõe suas falhas.


Identidade no trabalho


Num contexto de crise econômica e desemprego o mercado de trabalho estimula a competitividade exponencialmente exigindo algo aparentemente simples como destaque, para oferecer oportunidade de trabalho. Mas o que é destaque no cenário atual do mercado de trabalho? Varia quando pensamos nos diversos processos seletivos, cargos e empregadores diferentes, mas a pressão por se destacar pode caracterizar o mercado de trabalho como um espaço análogo a uma luta selvagem por sobrevivência onde é preciso dispor de todos os recursos para conseguir algum destaque.


Nos tornamos ao mesmo tempo um produto a ser vendido numa prateleira e o vendedor desse produto. Redes Sociais como Linkedn são interessantes para observar como se dá o cultivo dessa identidade profissional pública e virtual.


Sempre me vem a imagem de uma pessoa acordando e publicando sobre como acordar a fez perceber valores, e encontrar motivação pra produzir mais e melhor. Ou uma pessoa publicando que ao respirar refletiu sobre a importância do ar e como isso se relaciona com um valor profissional destacável, original, publicável e agradável para os olhos do consumidor, digo, empregador. Como se até respirar e acordar fossem oportunidades de se destacar. Não basta ter um bom desempenho, ou aprender algo, ou sentir algo no trabalho, para se destacar você deve também transformar isso em conteúdo e agregar ao seu perfil virtual. Essas experiências só passam a ter valor a medida em que te tornam um profissional agradável no cardápio.


Há uma lógica implícita e perturbadora que sustenta essas publicações que tem mais ou menos a forma de:


Quanto mais da minha vida dou ao trabalho melhor profissional eu sou

Qual seria então o profissional que se destaca? O profissional que não tem vida fora do trabalho e vive para o trabalho? É aquele profissional que dorme, não porque tem a satisfação em dormir, mas porque precisa cumprir a necessidade de sono para ser mais produtivo no trabalho? É um profissional que busca ser saudável para mostrar que sua produtividade não cai, e não para aproveitar sua saúde em vida? É o profissional que é profissional por 24/7?


O profissional ideal cada vez mais se parece com aquele que luta contra os altos e baixos da sua humanidade para agradar mais os empregadores com sua constância e se parecer cada vez mais com um robô ou um zumbi. É um profissional que evolui constantemente e infinitamente, que se supera a todo momento, que vive em confronto com o ideal de si mesmo jamais alcançando completude ou satisfação. Um profissional eternamente insatisfeito consigo mesmo e cada vez mais cansado.


Quando termina um expediente sem fim?


Aos poucos aquela sensação de dever cumprido foi se tornando mais breve e mais rara assim como a plenitude dos momentos de descanso e diversão.


Pelo lado do descanso, quando deito na grama e fecho os olhos não experimento o alívio do vazio de preocupações, pelo contrário, sou invadido por preocupações impossíveis de ter conclusão que atacam diretamente a experiência do descanso, como ter que melhorar o desempenho. O descanso não consegue mais lavar a alma das preocupações a menos que se tenha esgotado a capacidade física e mental de pensar qualquer coisa e o descanso seja uma imposição urgente do corpo. Máquinas não dormem e portanto não diminuem o ritmo de produtividade. Fechar os olhos é como ficar em alerta com uma nova tarefa que pode aparecer a qualquer momento ou ficar frustrado por sentir que você está diminuindo o desempenho.


Pelo lado da diversão, ela assume formas diferentes da diversão que traz aquela serenidade prazerosa de viver. As vezes a diversão é breve, pra sobrar tempo para ser mais produtivo, e mais intensa possível pra atender os anseios acumulados da alma, ainda que essa intensidade venha com exagero de entorpecentes e outros riscos mais graves. As vezes uma diversão da produtividade, algo que começa como lazer e distração mas logo se aproveita da necessidade de ser produtivo e vira um novo trabalho, uma nova responsabilidade em melhorar o desempenho., como uma válvula de satisfação para ser produtivo. Ou uma diversão culposa, pois não devia estar se divertindo, devia estar se dedicando ao aprimoramento de si mesmo para só depois, em algum momento desconhecido e misterioso, se divertir de fato.


Pelo lado dos deveres a sensação de insuficiência e o desejo constante por aprimoramento infinito. As frases que mais escuto se parecem mais ou menos com: "Fiz isso, mas poderia ter feito mais" ,"Fiz bem, mas poderia ter feito melhor" ,"Não devo me aprimorar porque sou obrigado a isso, mas devo me aprimorar porque posso" ,"Se não consigo é porque não estou me esforçando muito", "não estou sendo resiliente", "estou com pensamentos negativos demais", "tem alguma coisa errada comigo", "tinha que conseguir".


Há uma ideia de que com a estratégia a organização certas é possível explorar ao máximo toda potencialidade de um indivíduo. Essa ideia convida à seguinte lógica "posso ser uma versão melhor de mim mas não sou. Logo a versão que eu sou é um fracasso, e não vou chegar onde eu quero". Existe um anseio muito grande por chegar a um lugar de sucesso que costuma aparecer em comparação ao sucesso compartilhado por pessoas nas redes sociais. Mas quando vem a questão de onde exatamente é esse lugar, a resposta mais comum é um lugar onde não será mais necessário correr tanto.


Sem saber onde é a linha de chegada, como saber a hora de parar de correr?

Sem estipular a linha de chegada, nosso limite humano impõe o fim da corrida para nós, bem onde não conseguimos nos igualar a máquinas: nós adoecemos ou morremos. Aprimorar a si mesmo, tornar a melhor versão de si mesmo é constantemente tensionar nossos limites. Transtornos de ansiedade, Transtornos depressivos, Bournout, Síndrome do Impostor são limites possíveis que o corpo impõe a um ideal inalcançável.


As vezes esse lugar que as pessoas querem chegar tem mais a ver com algo que pode ser 'instagramável' ou 'linkedinável' do que a ver com uma vida experimentada na realidade offline.


Ao decidirmos a nossa linha de chegada, criamos um espaço onde é possível parar de correr, descansar e ouvir o corpo. Esse espaço onde não se está ocupado, não há compromisso com desempenho, eficiência e é possível se demorar e até se perder é um espaço onde podemos nos encontrar. É nele que é possível reavaliar a rota percorrida até então, se dar conta de enganos ou de novos valores que convidam a caminhos diferentes.


Essa linha de chegada é algo que parte da decisão de cada um riscar no chão, um limite que cada um se impõe pra poder comemorar a chegada, descansar e só então se preparar para alguma outra corrida. Se você não decide quais são seus limites, sua saúde decide por você. E dependendo do limite de saúde que é ultrapassado, a recuperação completa é menos possível.


Corrosão da vida plena


Na faculdade não tinha sinal que anunciava o fim da aula, mas ainda assim tinha certa alegria compartilhada em terminar a última aula ou estágio do dia porém uma alegria diferente de como era antes. A quantidade de deveres de um aluno da faculdade é diferente de um aluno do ensino fundamental. A sensação de dever cumprido ficou mais rara e mais difícil de ser alcançada assim como a plenitude dos momentos de descanso e diversão. Conforme as pessoas vão falando sobre trabalho, carreira e sucesso um clima silencioso de competitividade vai cobrindo a consciência como uma neblina densa num dia frio, trazendo vozes que sussurram a cada tarefa cumprida: "será que você realmente deu seu melhor?", "será que você não podia ter se dedicado um pouco mais?", "Fulane foi melhor que você", "Estude e trabalhe enquanto eles dormem...", "não perca tempo", "não fique para trás"...


Por outro lado, lembro que quando imerso na cobrança e no sentimento de fracasso encontrava colegas e diziam sobre seus limites e seus fracassos, experimentava uma sensação calma e calorosa como ser atingido pelo calor da luz do sol que corta a neblina. Por um momento ficar pra trás não significava estar sozinho e isso autorizava um estado de descanso compartilhado. Essa névoa de competitividade isola, põe um contra o outro e cada um por si, de tanto desconsiderar nossos limites desconsideramos também os limites dos outros.

Existe algo de curativo e revolucionário em um lugar onde podemos parar, falhar, descansar e ser imperfeitos juntos. Onde a vida vulnerável é compartilhada.


Com a pandemia muitas pessoas viram seus lares, locais reservados ao descanso e segurança se transformarem em locais de trabalho. O isolamento social tirou o foco da vida pública offline e colocou foco na vida pública online. A publicidade e manutenção da imagem pessoal em perfis profissionais no Instagram se tornou quase que uma regra para profissionais autônomos alcançarem destaque no mercado.


De alguma forma o expediente do trabalho começou a tomar conta de áreas da vida que não era capaz de alcançar antes. Se a maximização da performance e da produtividade orientou nossa relação com o trabalho, outras partes da vida também foram influenciadas por esses objetivos. O tempo de lazer, de autocuidado, de sono e de descanso também são vistos na ótica do desempenho e da boa performance.


Essa aposta no próprio desempenho em otimizar qualquer fazer em qualquer tempo priva a possibilidade de descansar de si mesmo e se abrir genuinamente para o outro e para o mundo.


Byung-Chul Han contrapõe o cansaço solitário da sociedade do desempenho com um cansaço "comunitário" no trecho que mais me marcou de todo o livro:


..."No tornar-se-menos do eu, desloca-se o peso do ser do eu para o mundo. É um 'cansaço que confia no mundo'; enquanto eu, o cansaço-eu enquanto cansaço solitário, é um cansaço sem mundo, destruidor de mundo. Ele "abre" o eu, torna-o "permeável" para o mundo. Reestabelece a dualidade que foi totalmente destruída no cansaço solitário. A gente vê e é vista. A gente toca e é tocada: 'Um cansaço como tornar-se acessível, sim, como plenificação do ser tocado e mesmo do poder tocar'. é o único que possibilita um demorar-se, uma estadia."...




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